Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
O amor desapareceu do Código Civil. Sim, ele esteve presente no extenso período de 1917-2001, quando da vigência da codificação de Beviláqua. O amor, é verdade, havia entrado de maneira discreta, quase imperceptível, no título relativo às várias espécies de contratos. Veja-se: o amor não se aninhou no Direito de Família, muito menos, como seria de se esperar, como um dos deveres conjugais, quais sejam: a fidelidade recíproca; a conservação da vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência e o sustento, guarda e educação dos filhos (artigo 231, CCB/1916). Seu correspondente no Código em vigor, o artigo 1.566, mantém os deveres nominados, com acréscimo do “respeito e consideração mútuos”.
O legislador de 1916 não determinou que os cônjuges se amassem ou que amar fosse um dever reciprocamente implicado e exigível entre eles. Agora, devem eles respeitar-se e considerar-se. Respeitar, segundo os dicionários, é ter por outrem um sentimento tal que o leva a tratá-lo com “grande atenção, profunda deferência; consideração, reverência”, como se lê noHouaiss. É estimar, considerar, mas também obedecer, acatar, recear. O respeito, em seus extremos, vai da deferência até o medo. Nesse sentido, a consideração confunde-se com o respeito. O uso das duas palavras é uma simples maneira de pôr ênfase ao comando legal, que já se bastaria em si pela mera invocação ao respeito.
O Código Beviláqua e o Código Reale insistem em algo que os tempos modernos (rectius, seriam pós-modernos?) consideram anacrônico: os cônjuges devem manter vida em comum, porém, “no domicílio conjugal”. Os casais de nosso tempo, e muitos há que assim vivem, violariam o dever do artigo 1.566 do Código Civil se não tiverem o mesmo domicílio conjugal. A doutrina tem rejeitado essa interpretação restritiva e contemplado as situações excepcionais de pessoas que, por razões ligadas à profissão, necessitam viver em domicílios diversos.[1] No entanto, para além de opções ligadas ao trabalho, é também aceitável que, por conveniência ou por uma forma peculiar de entender a relação matrimonial (ou afim), cada um dos cônjuges tenha seu próprio domicílio.
Uma vez mais, o amor tratou de fugir deste escrito. Afinal, onde ele se “domiciliava” no Código Civil de 1916? Sim, é o caso de voltar a ele. Bem, o amor estava na gestão de negócios! Como são verdadeiramente insondáveis os desígnios do codificador. A gestão de negócios, na boa linguagem clássica, é a administração oficiosa de interesses alheios. Alguém atua no interesse de outra pessoa, sem mandato, sem representação, sem ordem expressa, apenas com o intuito de protegê-lo ou de conservar os direitos do dominus (como é chamada a pessoa em favor de quem o gestor interfere).
Imagine-se em uma excursão para um país estrangeiro.outras pessoas que contrataram os serviços de uma operadora de turismo. Eis que um dos turistas (que você nem ao menos sabe direito o nome) tem uma síncope em frente à estátua de Rolando, na Cidade Livre e Hanseática de Bremen, na tarde livre da excursão. Você provavelmente vai ampará-lo, procurar ajuda médica, acompanhá-lo ao hospital, assumir diversos gastos e esperar até que alguém da operadora ou da família dele tome à frente dos problemas e libere-o dessa situação. O dominus, ou dono, na linguagem do Código Civil de 2002, deverá ressarci-lo dessas despesas.
A doutrina não considerava a gestão de negócios um contrato, posto que estivesse colocada no título das várias espécies contratuais no Código de 1916. Atualmente, com melhor técnica, a negotiorum gestio está inserida no título dos “atos unilaterais”, especificamente nos arts. 861-875, o que é mais consentâneo com sua natureza, pois não há o prévio acordo de vontades. Caio Mário da Silva Pereira oferece uma perfeita síntese dos pressupostos necessários à gestão de negócios: “1) tratar-se de negócio alheio, pois que, se for próprio, é pura administração; 2) proceder o gestor no interesse do dominus, ou segundo a sua vontade real ou presumida; 3) trazer a intenção de agir proveitosamente para o dono; 4) agir oficiosamente, pois que, se tiver havido uma delegação, é mandato; 5) limitar-se a ação gestor a atos de natureza patrimonial (negócios), uma vez que os de natureza diferente exigem sempre a outorga de poderes”.[2]
Eis que esse trânsfuga, que é o amor, mais uma vez sai de cena discretamente de nosso texto. De fato, ele só é exuberante e chamativo nos gestos dos casais apaixonados ou quando paixão há em excesso. E, não se esqueça, quando também a paixão é excessiva em sua falta, o que se nota nas rumorosas brigas de alguns enamorados, que fazem questão, seja pela mímica, seja pela voz, de danificar o patrimônio comum ou perturbar o sossego dos que estão próximos. Os advogados que atuam na área de Direito de Família bem o sabem: às vezes, as audiências com casais em processo de divórcio são mais pesadas e tristes do que uma equivalente numa vara criminal. Ali estão pessoas que se amaram e que parecem se odiar repentinamente.
Bem, voltemos ao Código. O gestor de negócios deve agir com diligência no trato das coisas do dono. E responderá por eventual prejuízo que lhe causar, desde que comprovada sua culpa (artigo 1.336, CCB/1916; artigo 866, CCB/2002). E se o dano causado ocorrer por um caso fortuito? A resposta encontrava-se no revogado artigo 1.338, a sede material do “amor” no Código de 1916: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesses deste por amor dos seus”. Na linguagem atual, correspondente ao artigo 868, diz-se não mais “por amor dos seus” e sim “ou quando preterir interesse deste em proveito de interesses seus”.
Chega a ser anticlimática essa aparição do amor no velho art. 1.338 do Código Civil revogado. Se olharmos mais de perto, não é o caso de se falar em anticlímax. O gestor obrigar-se-ia ao ressarcimento, mesmo em hipótese típica de irresponsabilidade por caso fortuito, quando preterisse os interesses do dono ao agir “por amor dos seus”. A proteção, o amor, o cuidado, a prevenção e o desvelo de quem ama (um cônjuge, um filho ou um pai) arruinariam o gestor. Explicava essa hipótese um dos grandes clássicos do Direito Civil do século XX, João Manuel de Carvalho Santos: “Não que isso dizer que o gestor não possa abandonar a gestão, para tratar de interesses seus, quando estes estiverem sendo prejudicados, nos termos por nós já expostos, mas isso só será possível se tomar a cautela de avisar o dono do negócio, para que este assuma a direção do mesmo, ou nomeie procurador que o administre e o conclua”.[3]
Mais do que uma explicação técnico-jurídica para a preterição dos interesses de alguém em nome do “amor dos seus”, é de se perceber algumas interessantes nuances dessa opção legislativa, a qual faz recordar outra muito curiosa: a criação de uma pena privada para o ausente que retorna, após a sucessão provisória, e fica comprovado que “a ausência foi voluntária e injustificada”. Nessa circunstância, o Código Civil de 2002, inovador em relação ao Código de 1916, estabeleceu a perda, em favor do sucessor, de “sua parte nos frutos e rendimentos” (parágrafo único do artigo 33). Sobre isso, em outra oportunidade, faremos uma singular aproximação com a parábola bíblica do filho pródigo, que aparentemente foi “revogada” pelo codificador de 2002.
Voltemos às nuances. Bem, o legislador brasileiro, ao menos em normas constitucionais e legais, não é muito sensível a juridicizar o amor. Além do Código de 1916, que só conta em termos históricos, no ordenamento vigente, só conseguimos encontrar o amor no Decreto 3.087, de 21.6.1999, publicado no DOU de 22.6.1999, que “promulga a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída na Haia, em 29 de maio de 1993”. E ele não está propriamente nos artigos da convenção, mas em um de seus consideranda: “Os Estados signatários da presente Convenção, Reconhecendo que, para o desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, a criança deve crescer em meio familiar, em clima de felicidade, de amor e de compreensão;(...) , acordam nas seguintes disposições”. Reconheçamos. O exemplo não é dos melhores: o amor não figura como norma e o diploma, posto que internado por um decreto, é uma convenção internacional.
Não é o caso de desistir. O amor aparece em um lugar insuspeito (ou jamais suspeitável, como queiram): o Estatuto dos Militares, a Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980, em cujo artigo 27, diz-se que “são manifestações essenciais do valor militar”, além de outras, “o amor à profissão das armas e o entusiasmo com que é exercida”. Outro exemplo polêmico, para se dizer o menos. A referência ao amor não é ao sentimento de alteridade, de “querer estar preso por vontade” ou de “um não querer mais que bem querer”, como definiu Luís Vaz de Camões, em seus célebres sonetos. O amor à profissão das armas, por mais nobre e respeitável que seja, não é o amor ao próximo. Embora, o casamento com a profissão certa seja um dos matrimônios mais estáveis e felizes de que se tem notícia.
Voltemos à pesquisa. As fontes legislativas esgotaram-se. É o caso de recorrer ao universo das instruções normativas, portarias e atos de igual dignidade.
Na Portaria 413, de 7 de março de 2012, do Ministério da Justiça, instituiu-se “o emblema do Departamento de Polícia Rodoviária Federal”. Uma vez mais a decepção: o amor não aparece em qualquer de seus seis artigos, mas no anexo II, que apresenta a “descrição heráldica” do emblema. Ali se explica que um dos elementos do emblema é o “símbolo de vida, de atividade, da ciência, do amor patriótico, como também de manutenção de uma tradição viva”.
O amor patriótico é muito relevante, mas não é a espécie que se busca nesta exaustiva investigação. Além da portaria do Ministério da Justiça, nada mais foi encontrado.
Atualmente, deseja-se alterar o dístico da bandeira do Brasil para lhe acrescer a palavra “amor”, além de “ordem e progresso”. De fato, o lema positivista original, de Augusto Comte, dizia: “Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. No projeto de lei submetido ao Congresso Nacional, fez-se alusão a essa circunstância histórica para se defender a mudança do pavilhão nacional.
Por agora, é importante apresentar uma questão: por que o Direito (ou melhor, o ordenamento jurídico) é tão pouco receptivo à presença do amor em suas normas? Note-se que o “ódio”, por exemplo, aparece em nada menos que 16 documentos, o que se justifica pela circunstância de pretender reprová-lo como conduta humana.
Os conceitos metajurídicos estão de volta à moda nos últimos tempos. Falar-se em “sentimento”, “sensibilidade”, “paixão”, “compaixão”, “afeto”, “carinho” e “humanidade” em acórdãos, sentenças ou livros de doutrina tornou-se algo bem visto. Não se pode esquecer que, ao tempo de Justiniano, quando as tradições romanas desapareciam no Ocidente, tomado pelos bárbaros, a benevolentia, acaritas (que não é senão o amor), a equitas e outras expressões que apelavam à metafísica ganharam enorme importância, a ponto de entrar para alguns textos jurídicos.
A reflexão sobre o “amor” no Direito pode-se converter em um exercício de pieguismo ou assumir a forma de debates totalmente sem fundamentação teórica. Fenômeno extremamente comum na dogmática e na jurisprudência contemporânea, o que é lastimável. O Direito não se pode transformar em um “beco sem saída do senso-comum”. Se conseguirmos fugir dessa armadilha, eis que há margem para algum tipo de (interessante) debate.
Retomando a questão anteriormente proposta, sobre essa eloquente ausência do “amor”, ela talvez possa ser respondida sob duas ópticas:
1. O Direito ocupa-se de direitos e deveres (ou obrigações) que são, em geral, correlatos. As relações amorosas não são exigíveis ou executáveis, daí os códigos de 1916 e 2002 não terem colocado o amor como um dever conjugal. Ama-se por “querer estar preso por vontade”. Afinal, o amor é “servir a quem vence o vencedor; é ter com quem nos mata lealdade”, recitando o soneto camoniano.
2. A utilização do amor, em uma norma, pode ser desastrosa para o próprio amor, que se contaminaria com a imperfeição humana, a qual, por sua vez, contagiou o Direito desde seu nascimento, pois não há nada mais próximo das baixezas (e das grandezas), dos vícios (e das virtudes), da sordidez (e da magnanimidade) que o Direito. Cada porção de justiça é acompanhada de uma idêntica parte de injustiça. Fazer justiça é, muita vez, gerar uma injustiça. Com o amor, não é assim e não pode ser assim.
Na próxima coluna, tentar-se-á expor como o Direito estrangeiro trata essa palavra tão intensa e significativa para o homem ocidental. E, evidentemente, desenvolver um pouco mais as hipóteses 1 e 2.
[1] RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 172; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; OLIVEIRA, Andréa Leite Ribeiro de. Domicílio no Código Civil de 2002. Revista Forense, v. 102, n. 388, p. 79-91, dez. 2006. p. 90.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14. ed. Atualizada por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 3. p. 380.
[3] CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Código Civil brasileiro interpretado (principalmente do ponto-de-vista prático): Arts. 1.265-1.362. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1992. v. XVIII. comentários ao art. 1.338.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídico, 19 de dezembro de 2012